segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Nova classe perigosa?

Texto de Ruy Braga Publicado no blog da Boitempo



O livro de Guy Standing, O precariado: a nova classe perigosa (São Paulo, Autêntica, 2013), acabou de ser publicado no Brasil. Trata-se de uma dessas aguardadas análises que chegou na hora certa. Um dos mais impactantes livros sobre o mundo do trabalho lançado nas últimas décadas, ele já surgiu com ares de “clássico” por ser capaz de traduzir em dados o espírito de toda uma época: vivemos sob a sombra do “precariado”, isto é, um novo grupo de pessoas despojadas de garantias trabalhistas, submetidas a rendimentos incertos e carentes de uma identidade apoiada sobre o trabalho. Em larga medida, da qualidade da ação coletiva deste grupo depende o futuro dos movimentos sociais globais.

A descrição que Standing faz das razões pelas quais a globalização econômica por meio da flexibilidade do trabalho ampliou incessantemente o tamanho do precariado é verdadeiramente arrasadora. A mercantilização do trabalho associada tanto ao aprofundamento da concorrência intercapitalista quanto à financeirização do meio ambiente empresarial reviveu o pesadelo de Karl Polanyi. Como é sabido, para o grande sociólogo húngaro, ao açambarcar as três mercadorias fictícias – isto é, o dinheiro, o trabalho e a terra –, o capitalismo colocaria em risco o conjunto da reprodução social.

Em seu belo volume, Standing enfrentou os desafios levantados por Polanyi há exatos setenta anos. Além de criticar a liberdade de movimentos e a concentração dos capitais financeiros, ele denunciou os efeitos deletérios da submissão de parte substantiva do movimento sindical europeu e de setores predominantes do mainstream político social-democrata a um modelo de desenvolvimento socialmente irresponsável e ecologicamente insustentável. No entanto, seu foco principal é o advento e o destino histórico do precariado como uma nova classe em transformação.

Poderia passar muito mais tempo simplesmente realçando os superlativos méritos do livro. No entanto, estou entre aqueles que consideram que um estudo desta qualidade sempre estimulará o desejo de discutir e de argumentar. Adianto que, ao contrário da maior parte dos exemplos e dados presentes no livro cujo foco recai sobre as relações trabalhistas em países de capitalismo avançado comentarei o livro da perspectiva de alguém que estuda as metamorfoses do capitalismo e da classe trabalhadora no chamado “Sul global”.

Talvez isto seja de alguma valia ao debate. Afinal, em minha opinião, Standing concentra-se excessivamente na ampliação do precariado em países de capitalismo avançado, sobrando pouco espaço para a maior parte da força de trabalho mundial que se encontra submetida a condições severamente piores de precariedade laboral do que aquelas encontradas na Europa ocidental. De fato, uma parte significativa das ameaçadoras relações sociais tão bem analisadas no livro parecem incrivelmente familiares à sensibilidade daqueles que se especializaram em pesquisar, por exemplo, a resiliência histórica do trabalho informal nas economias do Sul global.

Por essa razão, dentre as inúmeras possibilidades de interlocução com o livro, tentarei me concentrar em apenas duas variáveis do precariado global, isto é sua natureza de classe e seus padrões de mobilização coletiva. Standing compreende que o precariado não faz parte da classe trabalhadora. Ao contrário, ele constituiria uma classe social de novo tipo produto das transformações decorrentes da globalização capitalista e das estratégias de flexibilização do trabalho em suas múltiplas dimensões. De uma certa maneira, o precariado seria o filho indesejado do casamento do neoliberalismo com a globalização do capital.

Esta união teria engendrado uma nova classe formada basicamente por pessoas destituídas das garantias sociais relativas ao vínculo empregatício, à segurança no emprego, à segurança no trabalho, às formas de reprodução das qualificações, à segurança da renda e à falta de representação política. Tudo aquilo que configurou a robustez, na Europa e nos Estados Unidos, sobretudo, da cidadania salarial fordista após a Segunda Guerra Mundial e que estaria sendo negado à geração dos filhos dos babyboomers.

Em termos históricos, Standing entende que o precariado afasta-se da classe trabalhadora, pelo fato desta sugerir uma sociedade formada majoritariamente por:

“(…) Trabalhadores de longo prazo, em empregos estáveis de horas fixas, com rotas de promoção estabelecidas, sujeitos a acordos de sindicalização e coletivos, com cargos que seus pais e mães teriam entendido, defrontando-se com empregadores locais cujos nomes e características eles estavam familiarizados” (Standing, 2013: 22-23).

Em nossa opinião, esta definição aproxima-se mais do conceito de “salariado” – criado pelos economistas da Escola Francesa da Regulação e enriquecido por sociólogos críticos, como o saudoso Robert Castel, por exemplo, para apreender o tipo de norma social de consumo própria ao modelo de desenvolvimento fordista – do que do clássico conceito de “proletariado” ou mesmo de “classe trabalhadora”. Nunca é demais lembrar que, para Marx, em decorrência da mercantilização do trabalho, do caráter capitalista da divisão do trabalho e da anarquia da reprodução do capital, a precariedade é parte constitutiva da relação salarial.

Em termos marxistas, o aprofundamento da precarização laboral em escala global apoia-se no aumento da taxa de exploração da força de trabalho tendo em vista, sobretudo, a espoliação dos direitos sociais associada à acumulação por desapossamento. Em todo caso, não nos parece razoável falar em uma relação de produção de novo tipo capaz de produzir uma “nova classe”. Antes, trata-se de um retrocesso em termos civilizatórios potencializado pelo ciclo de acumulação desacelerada que se arrasta desde, ao menos, meados dos anos 1970 e cujos desdobramentos, potencializados pela crise atual, em termos da deterioração do padrão de vida dos trabalhadores e assalariados médios tornaram-se mais salientes a partir de 2008.

Se, ao menos, na Europa ocidental e nos Estados Unidos, décadas de institucionalização de direitos sociais mitigaram a condição estruturalmente precária do trabalho assalariado, integrando a fração masculina, branca, adulta, nacional e sindicalizada da classe trabalhadora ao ciclo “virtuoso” da transferência de parte dos ganhos de produtividade aos salários, a transformação de um longo período de crescimento lento em uma crise econômica sistêmica trouxe novamente à baila a precariedade laboral como um traço ineliminável da mercantilização do trabalho.

Com isso, gostaria apenas de dizer que a ausência de um sentido de carreira, de identidade profissional segura e de direitos trabalhistas, são traços que, grosso modo, sempre estiveram presentes na própria definição da força de trabalho fordista no Brasil. E estas características continuam presentes nos dias de hoje. Apenas para efeitos comparativos, entre 2003 e 2010, um período marcado por flagrante crescimento econômico com formalização do emprego, a atual taxa de informalidade do trabalho no Brasil ainda é de 44%. Vale lembrar que, no sul da Europa, mesmo após cinco anos de forte crise econômica, esta taxa gravita em torno de 20%.

Uma mirada na formação do precariado europeu de uma perspectiva brasileira talvez também seja útil para problematizar aquela que constitui a grande contribuição de Standing ao debate público contemporâneo: o alerta sobre a natureza “perigosa”, isto é, filo-fascista, desta nova classe. De fato, o autor constrói ao longo do livro uma imagem do precariado como sendo uma classe alienada, ansiosa, insegura, infantilizada, oportunista, cínica, passiva – tanto mental, como politicamente –, além de detentora de um estado psíquico nebuloso. Não é de se estranhar, portanto, que, do ponto de vista político, o precariado seja considerado potencialmente hostil ao regime democrático, além de uma presa fácil dos apelos direitistas.

Gostaria de me deter sobre este ponto, qual seja, a “política do precariado”, por um momento. Se, por um lado, Standing nitidamente acerta ao destacar os jovens recém-chegados ao mercado de trabalho, especialmente, os estagiários e os operadores de telemarketing, como o grupo mais representativo entre os que irão desenvolver uma trajetória ocupacional frustrante e apartada daquela bem mais estável verificada por seus pais, por outro, sua caracterização a respeito da relação destes jovens com os sindicatos merece um olhar mais detido. Em suma, o autor identificou uma postura ressentida e anti-sindical por parte significativa do precariado.

Devido, sobretudo, ao fato de que os trabalhadores jovens e politicamente inexperientes, cada dia mais submetidos a empregos temporários, considerarem impossível formar associações coletivas no processo de produção seria a razão da saliente hostilidade em relação ao movimento sindical. Afinal, o precariado associaria os sindicatos aos “privilégios” reservados aos assalariados mais velhos e que ainda desfrutam da proteção de um tipo de compromisso social em flagrante desintegração.

Para Standing, fazer frente ao enorme desafio social representado pelo crescimento ininterrupto desta classe alienada em vias de se deixar seduzir por apelos populistas e iniciativas autoritárias implica substituir a agenda sindical por uma nova agenda de segurança econômica e de mobilidade social apoiada sobre uma reforma das políticas públicas. Como os sindicatos tenderiam a se enfraquecer a cada dia e, consequentemente, tombar sobre seu próprio egoísmo burocrático, eles, supostamente, não poderiam construir soluções políticas capazes de fortalecer a universalização dos direitos sociais necessária para fazer frente ao crescimento do precariado.

O fato curioso é que, em 2004, quando iniciei minha pesquisa de campo a respeito dos operadores de telemarketing em São Paulo, eu próprio sustentava expectativas bastante semelhantes no tocante à consciência sindical destes jovens trabalhadores. E como poderia ser diferente se, neste setor, prevaleciam os baixos salários, os contratos temporários, a alta rotatividade, a hostilidade aos sindicatos, a inexperiência política e os desejos individualistas de consumo? Conforme a pesquisa evoluiu, no entanto, fui me dando conta de que uma realidade acentuadamente diferente, senão, totalmente contrária, prevalecia neste setor.

O que aconteceria se, aos olhos dos jovens trabalhadores precarizados, ao invés de representar os privilégios inalcançáveis da geração anterior, os sindicatos anunciassem a possibilidade de acender aos direitos sociais que foram negados a seus pais? Foi exatamente essa a realidade que encontrei ao estudar a relação dos operadores de telemarketing da indústria paulistana do call center com o movimento sindical que atua no setor. E, nos últimos 15 anos, os sindicatos têm se empenhado em atualizar suas táticas a fim de se aproximarem da massa de trabalhadores jovens que todos os anos acorre às empresas do setor.

Além disso, os próprios teleoperadores, apesar de sua inexperiência política, aproximam-se fatalmente dos sindicatos em busca de apoio a suas reivindicações trabalhistas. E como poderia ser diferente se, no setor, tende a imperar a dura realidade dos baixos salários, da alta rotatividade, do adoecimento, do assédio moral, etc.? O aprofundamento da experiência com o regime de trabalho despótico da indústria do call center tende a promover não apenas comportamentos críticos em relação às empresas, como também o desenvolvimento de formas embrionárias de consciência de classe que são potencializadas pelos sindicatos. O resultado desta aproximação entre os teleoperadores e o sindicalismo pode ser medido, por exemplo, pelo aumento da participação destes trabalhadores nas greves nacionais bancárias dos últimos anos.

Um contra-argumento legítimo seria invocar a excepcionalidade do caso brasileiro a fim de mitigar a força deste exemplo. Afinal, há dez anos o país é governado pelo Partido dos Trabalhadores e a crise internacional não teria atingido o país como o fez na Europa. E, mesmo com uma taxa de crescimento abaixo da média dos anos 2000, a estrutura social do Brasil continua a criar milhões de empregos formais todos os anos. Exatamente por isso, gostaríamos de invocar outro estudo de caso para pensarmos a suposta incompatibilidade política identificada por Standing entre o precariado e o movimento sindical, isto é, o caso de Portugal.

Trata-se de um exemplo emblemático do crescimento do precariado motivado pela crise econômica mundial. Desde 2008, a taxa de desemprego aumenta no país e as relações trabalhistas estão sendo submetidas a condições cada vez mais precárias. O desemprego e o subemprego atingem mais da metade da população economicamente ativa entre os 15 e os 35 anos. Para os jovens, praticamente não há perspectivas de contratação que não seja por meio de vínculos intermitentes. A massa salarial diminuiu e o Estado avança nos cortes de gastos e nas demissões motivadas pela adoção das medidas de austeridade acertadas com a Troika (isto é, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional).

Pois bem, qual tem sido a reação dos jovens trabalhadores precarizados portugueses frente ao assalto a seus direitos sociais? Desde 2011, eles investem em massivas manifestações de protesto contra as medidas do governo de Pedro Passos Coelho. As maiores foram, sem dúvidas, organizadas pelo movimento “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!” e ocorreram nos dias 15 de setembro de 2012 e 2 de março de 2013, acantonando mais de 1 milhão de pessoas cada nas principais cidades do país. Animado por cerca de uma dezena de associações de trabalhadores precarizados, como os “Precários Inflexíveis”, por exemplo, desde o início o movimento “Que se lixe a troika!” convidou os sindicatos e, mais precisamente, a Central Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), a integrarem os protestos.

A resposta do movimento sindical foi bastante positiva: além de participarem das marchas, os sindicatos convocaram greves gerais, reforçando as demandas contra a precarização do trabalho em suas campanhas. Ao contrário de uma hostilidade dos jovens em relação aos sindicatos, percebe-se uma relação tensa, porém, marcadamente solidária, em termos políticos. Na realidade, os jovens mobilizam-se para defender os direitos sociais conquistados por seus pais e vêem os sindicatos como aliados e não como adversários de sua luta.

Existem inúmeras diferenças entre os casos brasileiro e português. Os jovens trabalhadores no Brasil, por exemplo, lutam por efetivar direitos enquanto os portugueses mobilizam-se para conservar direitos sociais. Além disso, há muitas diferenças em termos de composição social e qualificação do trabalho separando estes jovens. Uns olham para o futuro com um certo otimismo, enquanto outros vivem o pesadelo de não enxergar futuro algum. No entanto, em ambos os casos, não há evidentemente hostilidade ao regime democrático. Muito ao contrário, a práxis política desses grupos é marcadamente progressista.


Finalmente, diríamos que o livro de Guy Standing é uma obra fascinante não apenas pelas questões que ilumina, mas, sobretudo, pelas polêmicas que é capaz de nutrir. A discussão sobre se o precariado é ou não uma “nova classe” apartada do proletariado e com interesses contrários ao movimento sindical é uma destas questões polêmicas que merece ser debatida. Afinal, estamos convencidos de que é da qualidade da ação coletiva deste jovem precariado global que depende o futuro dos movimentos sociais.

Publicado em http://blogdaboitempo.com.br/

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