Sem dúvida, aterrorizar a população, plantar o medo por meio de notícias sensacionalistas, é um dos meios mais efetivos de legitimar a violência.
Sob pretexto de combater uma violência supostamente desenfreada, alguns dos que querem sempre menos Estado e reclamam de um suposto "Estado balofo", louvam a violência estatal, o aumento de penas, a criação de tipos abertos, dentre outras medidas que visam a legitimar a violência estatal, a repressão em nome de certa ordem pública, que visam a aumentar o "Estado policial", o "Estado Emergencial", o "Estado de Exceção".
Sob pretexto de combater uma violência supostamente desenfreada, alguns dos que querem sempre menos Estado e reclamam de um suposto "Estado balofo", louvam a violência estatal, o aumento de penas, a criação de tipos abertos, dentre outras medidas que visam a legitimar a violência estatal, a repressão em nome de certa ordem pública, que visam a aumentar o "Estado policial", o "Estado Emergencial", o "Estado de Exceção".
Sobre isto, o texto publicado em Carta Capital é preciso (http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-mundo-assombrado-de-rachel-sheherazade-4025.html). Vejamos:
O mundo assombrado de Rachel Sheherazade
Deram uma página em branco para apresentadora e ela manifestou tudo o que conhece sobre o Brasil: nada
por Matheus Pichonelli
Em entrevista recente à coluna Mônica Bergamo, na Folha de
S.Paulo, a apresentadora do SBT Rachel Sheherazade contou ser neurótica com a
violência urbana, sobretudo porque noticia diariamente “tudo o que há de ruim”.
Por isso, relatou, só sai de casa para ir ao trabalho. De vez em quando vai ao
shopping ou ao teatro. Sempre de carro blindado.
O mundo que ela e certa casta de detentores da verdade
noticiam, portanto, é um mundo projetado. Ruim, decerto, mas desenhado sem
conhecimento de causa. É uma praga que corrói o jornalismo: quem se propõe a
narrar diariamente os fatos não conhece os fatos. Não anda nas ruas. Não
circula. Não sai da bolha. E, do alto de um mirante, passa a emitir ordens
sobre como é a vida de sua audiência e/ou leitores, estes que eles mesmos mal
sabem quem são ou como vivem.
Sobre esta espécie de “editoria de piá criado em prédio”,
tínhamos uma sentença já à época de faculdade: podem enganar até seus chefes,
mas deem uma folha em branco a eles para escrever sobre qualquer assunto e de
lá não sairá nada.
Pois então. Na terça-feira 11, a mesmaFolha de S.Paulo deu
vida a esta alegoria. Espaço para especialistas, estudiosos e pesquisadores, a
seção Tendências e Debates deu uma folha em branco para Sheherazade demonstrar
tudo o que sabe sobre segurança pública, direitos humanos e sobre o seu país
que, dias atrás, ela confessou se limitar da casa ao trabalho e,
esporadicamente, da casa para o shopping. É nessa trajetória que ela recria a
imagem de um país jorrado em sangue: sem policiamento, com bandidos à solta,
armas em punho, a cometer todas as atrocidades contra todo mundo que é de bem.
Pessoas que, segundo sua peça literária publicada em forma de artigo,
escolheram ser criminosas e hoje recebem a solidariedade e pena de ONGs e
grupos de direitos humanos e por isso, e só por isso, têm carta-branca para
instalar o real estado de natureza em um país de impunidades.
Em resumo, deram uma página em branco para Sheherazade e ela
manifestou tudo o que conhece sobre o Brasil: nada. Neste espaço, ela voltou a
dizer que os criminosos estão soltos, que o Brasil é um dos países mais
violentos do planeta, que a lei é frágil, que os menores infratores estão
protegidos e que só quem agride animais vai para a cadeia. Neste universo, diz
identificar nitidamente o bem e o mal: o bem somos nós, eu, você, cidadãos que
pagam impostos e têm o direito à vida. Os maus são os criminosos comuns
protegidos por ONGs e pelo Estado que atrapalham nossos caminhos em direção a
uma vida de bem: casa, trabalho, shopping.
De fato, somos um país violento. Mas essa violência é mais
difusa do que supõe sua folha em branco. Por isso ela e seus seguidores não
conseguem reconhecer que parte da nossa violência brota de onde menos se
espera. É reproduzida, por exemplo, por grupos que ela diz compreender que ajam
ao arrepio da lei. Se a ação destes grupos é compreensível, diante da barbárie
que ela jura estar instalada, estamos prestes a aceitar que encapuzados
organizados saiam às ruas, diante da paralisia que ela jura estar encerrada à
polícia, para colocar ordem no estado. Assim, saímos legitimados a espancar não
só o “trombadinha”, como também a prostituta, o andarilho, o casal gay. Ou
seja: façam exatamente o que fazem no Brasil há séculos.
Em seus argumentos, Sheherazade afirma que a sensação de
impunidade no Brasil se deve à fragilidade do Estado, culpa de um policiamento
falho amarrado a normas sobre autos de resistência. Se andasse na periferia,
saberia o que é discurso oficial e o que é piada pronta. Se soubesse ler
estatísticas, saberia que quem está na mira não são os cidadãos aprisionados em
condomínios fechados, mas jovens e pobres e das periferias. Uma pesquisa
divulgada pelo Ipea no fim do ano passado mostrou que dois de cada três
assassinatos no Brasil têm como vítima um negro. Em janeiro, um levantamento do
iG revelou que os três distritos com mais assassinatos em São Paulo ficam na
periferia da cidade: Parque Santo Antônio, Capão Redondo e Campo Limpo. Não é
pena, é estatística: não é a ordem da periferia que provoca mortes no centro,
mas a ordem do centro que provoca mortes na periferia. Por isso podemos andar tranquilamente
por espaços do centro, iluminados e bem policiados: a escuridão está longe da
nossa trajetória.
Em Campinas, a pena que ela diz existir sobre a bandidagem
não salvou 13 pessoas, alguns sem passagem pela polícia, da morte em duas
chacinas na mesma noite. Policiais militares da região são os principais
suspeitos. E se a atenção sobre autos de resistência fosse de fato um elemento
a corroborar com a impunidade, ninguém daria tiro a céu aberto contra
portadores de bolas de gude durante um protesto em São Paulo. Basta olhar a
profusão de cassetetes, bombas de efeito moral e interrogatórios ao ar livre,
com tapas na cara e pontapés, para lembrar também que no Brasil desconhecido
por Sheherazade ninguém está exatamente constrangido em aplicar rigor sobre
qualquer suspeita.
Mas Sheherazade e tantos outros detentores do monopólio da
verdade sobre as ruas não andam nas ruas: provavelmente nunca viram qualquer
abordagem para tirar qualquer conclusão. A falta de contato com o mundo cria
narrativas paralelas e, nessas narrativas, a visão de mundo não tem pé na
realidade nem na análise fria de qualquer estatística. Por isso ignora-se que a
seletividade da aplicação da lei é o elemento que permite todo tipo de
barbárie, e não a frouxidão de suas normas. Sheherazade poderia explicar, por
exemplo, como um Estado mais rígido, que ela jura inexistir, poderia impedir a
barbárie nos locais onde, por natureza, não existe policiamento: as casas das
famílias de bem, de onde saem pais e mães assassinados, esposas e esposos
esfaqueados e colocados na mala, filhos são jogados pela janela ou levados ao
córrego vizinho. (No artigo, ela diz que o cidadão de bem está desarmado e isso
é culpa do Estado, mas ignora os crimes com armas de fogo cometidos dentro de
casa por pais e filhos com armas ao alcance).
Ainda segundo o mundo de Sheherazade, as delegacias e
presídios estão vazios: os criminosos pintam e bordam e saem de lá pela porta
da frente, enquanto os cidadãos de bem que matam papagaios estão presos. Pois,
fora do caminho casa-trabalho-shopping, o Brasil está curioso para conhecer
essa multidão assassina de passarinhos que abarrotam as celas das delegacias e
penitenciárias brasileiras. Se Sheherazade conhecer um, que nos apresente, pois
no mundo real tem mais gente presa do que ela imagina. Quem está solto, podemos
garantir, não são os menores que transformam a vida da população de bem em um
inferno, mas cidadãos que não assaltam carteira, mas orçamento; golpistas com
editais de serviços públicos debaixo dos braços; engravatados de cartéis e
oligopólios no campo e na cidade; autoridades com vistas grossas sobre venda e
distribuição de drogas e armas; mandantes protegidos por capangas; e até
machões enciumados que alegaram direito à honra para justificar o morticínio. A
diferença é que estes ganham tempo com recursos processuais dos quais só uma
parte da população ouviu dizer.
Se olhar caso a caso, a apresentadora talvez se espante em
saber que a nuance da tragédia diária não cabe na narrativa de bem e mal. Dizer
que soluções simplistas não vão resolver problema algum não é demonstrar pena
de bandido ou do inocente: é simplesmente ser realista e desapegado de fórmulas
mágicas.
O Brasil é, de fato, um lugar de insegurança patente, mas
existem muitos Brasis dentro de um mesmo país. Um está fora dos centros e tem
um corpo esturricado em cada beco pelo Estado, por grupos paramilitares ou por
acerto de conta; outro, encalacrado em bairros nobres, tem padrão israelense de
segurança. É disso que se trata quando se pede responsabilidade na palavra
final dos fatos. Não se trata de apelo à piedade ou à censura, mas de um apelo
à razão. Dentro de casa, apavorados com o próprio medo e o mofo das cortinas
fechadas, criamos um monstro imaginário, damos cor e rosto a um inimigo e
passamos a defender soluções autoritárias para poder sair do quarto. Só
sairemos de lá quando as ruas estiverem limpas. Foi este o apelo que permitiu
ao longo da História a adoção de políticas autoritárias em troca da dissolução
de direitos civis, políticos e sociais, sobretudo os grupos já marginalizados
(atenção: não estamos falando de marginais). Estas respostas autoritárias não
fizeram do planeta um lugar melhor para se habitar. Pelo contrário, criaram
novas chagas. No caso do Brasil, existem chagas demais a serem tratadas.
Espancar, torturar ou humilhar jamais fechou nenhuma delas.
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