terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Nota da APADEP sobre os rolezinhos

Confira o Tweet de @ANADEP_Brasil: https://twitter.com/ANADEP_Brasil/status/425270819757895680


Desde dezembro de 2013, têm se espalhado pela Grande São Paulo encontros em shoppings de jovens da periferia marcados pelas redes sociais, que ficaram conhecidos como “rolezinhos”. De maneira injustificada e desproporcional, os eventos passaram a ser violentamente reprimidos e proibidos pela Justiça por meio de liminares, com jovens ameaçados, barrados na entrada de alguns estabelecimentos, temporariamente detidos e alvos de inquéritos policiais.

Embora não sejam manifestações explícitas de cunho político, os rolezinhos expressam questões sociais profundas, envidenciadas sobretudo após a forte reação contrária que sofreram. Não estão isentos de contradições internas, pois são ao mesmo tempo um grito contra a exclusão e em certa medida resultado do fascínio pela ostentação e pelo consumismo que estão na base de um sistema gerador de desigualdades. Trazem demandas por uma cidadania pautada no consumo, mas são também um processo coletivo de resistência.

Essa ambiguidade dos rolezinhos revela contradições maiores de toda a sociedade. A primeira delas e talvez mais evidente é a ausência de equipamentos públicos de socialização, sobretudo nas periferias das grandes metrópoles brasileiras, onde são raras as praças, as quadras esportivas, os centros culturais e os parques públicos. Denotam também a insuficiência de políticas públicas para a juventude, situação agravada no caso da população mais pobre e marginalizada. E aí denunciam um outro problema grave, a discriminação por classe e cor que sofrem, também nesses encontros marcados pela internet, os brasileiros negros e moradores das periferias.

A Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep), assim, se manifesta publicamente contra a criminalização desses eventos, e no contexto ainda mais abrangente, contra a criminalização da própria pobreza. Não obstante consistam em propriedades privadas, os shoppings e centros comerciais são espaços de uso público. E a Constituição garante a fruição em espaços dessa natureza, não tendo respaldo legal a proibição de entrada de quem quer que seja com base em critérios subjetivos. Ademais, lembramos que a lei federal nº 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, estabelece como crime em seu artigo 5º “recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial”, com previsão de reclusão de um a três anos.


Não será por meio de repressão que os rolezinhos vão parar. Já se espalharam por cidades de todo o Brasil e a confrontação só amplificará a repercussão do movimento com os conhecidos efeitos colaterais das ações de segurança desordenadas. Devem ser entendidos como momentos de lazer e confraternização de adolescentes e, por isso, não podem receber do Estado uma intervenção desproporcional e repressora. Em vez disso, deveríamos entender o que tais eventos têm a nos dizer. Ainda que inconsciente, os rolezinhos são uma reivindicação de uma população que tem seus direitos básicos diuturnamente negados. A resposta deve ser mais inclusão, mais espaços de cidadania, mais cidade e acesso efetivo aos direitos fundamentais.

Gilberto Carvalho sobre os rolezinhos

Confira o Tweet de @jnascim: https://twitter.com/jnascim/status/425272255397244929

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Tempo de deslocamento define o que é periferia ou centro


Um paulistano demora, em média, 43 minutos para ir de casa ao trabalho todos os dias. E a população mais pobre demora 20% mais tempo que os mais ricos para fazer a viagem, segundo o Ipea
14/01/2014

Por Thiago Borges

Do Periferia em Movimento

Milhares de brasileiros saíram às ruas no ano passado durante as jornadas de junho. Causas diversas e muitas vezes superficiais, mas que surgiram após um movimento reivindicatório antigo, pela tarifa zero. Os protestos realizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) e outros movimentos populares das periferias são contra as catracas do transporte e, mais que isso, contra as barreiras para se usufruir a cidade.

Mas, mais do que o espaço a ser ocupado na cidade, é o tempo que define quem está dentro ou fora da festa urbana.

Um levantamento do jornal Estado de S. Paulo mostra que o tempo de deslocamento de casa para o trabalho é até 163% maior na periferia da capital paulista. Enquanto um morador de Moema (bairro nobre de São Paulo) leva em média 34 minutos para ir de casa ao trabalho, o tempo mais que dobra para moradores de Cidade Tiradentes (1h19min), Grajaú (1h16min) ou Itaim Paulista (1h07min).

Segundo um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), São Paulo fica atrás apenas de Xangai, na China, quando o assunto é o tempo gasto nesse percurso.

Um paulistano demora, em média, 43 minutos para ir de casa ao trabalho todos os dias. E a população mais pobre demora 20% mais tempo que os mais ricos para fazer a viagem, segundo o Ipea.

O estudo aponta deficiências no sistema de mobilidade urbana, mas ainda que recentemente governo federal e prefeitura municipal tenham anunciado investimentos de R$ 3 bilhões em transporte público a situação só vai mudar quando as desigualdades sociais forem atacadas.

“A cidade é um jogo, e esse jogo não se define pela localização em seu espaço, mas pelo tempo que se tem para usufruir desses espaços”, observa Tiaraju D’Andrea, doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e morador de Itaquera (zona leste). “Toda discussão sobre valorização de um imóvel, por exemplo, tem como pano de fundo o tempo gasto para se deslocar na cidade”, diz ele.

D’Andrea aponta que o processo de formação das periferias está ligado à ressignificação de territórios urbanos pelo mercado imobiliário.

No sistema capitalista, o amontoado de terra chamado ‘cidade’ é mais uma mercadoria a ser vendida. E esse preço é estabelecido pelo espaço: se há favela por perto, o preço cai. Mas o imóvel se “valoriza” quando há metrô, parques, shopping centers ou outras “melhorias” no entorno.


Novos centros, novas periferias

A ideia de periferia surge na Guerra Fria, quando duas potências – Estados Unidos e União Soviética – disputavam a influência sobre o restante do globo.

Esse conceito foi aplicado às cidades para definir suas geografias. Mas o significado se modificou ao longo do tempo.

“No caso da cidade de são Paulo, dizer que periferia e centro são diferenças geográficas não resolve muito, porque o que vai diferenciar um do outro são características sociais dessa periferia e desse centro”, observa D’Andrea.

Em São Paulo, por exemplo, há extensas periferias distantes do centro com características de empobrecimento. Mas, ao mesmo tempo, o centro geográfico da cidade também apresenta essas características. A diferença é o acesso a equipamentos públicos, culturais e infraestrutura urbana, que não existem nas regiões mais afastadas.

Ao longo das décadas, o verdadeiro centro de São Paulo – o financeiro, ao redor do qual orbitam os investimentos públicos e privados e as vagas de emprego – se deslocou duas vezes. Primeiro, passou da região da Praça da Sé para a avenida Paulista. Depois, se estabeleceu no perímetro entre a Paulista e a várzea do rio Pinheiros, entre as avenidas Faria Lima, Luiz Carlos Berrini e Chucri Zaidan – e deve se estender pelas Nações Unidas até a avenida Interlagos.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Brasil abandonou a ideia de recuperação de presos, afirma relator da ONU

Da Folha de S. Paulo de hoje, http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1396434-brasil-abandonou-a-ideia-de-recuperacao-de-presos-afirma-relator-da-onu.shtml

LEANDRO COLON
DE LONDRES

Em entrevista à Folha, o relator especial sobre tortura da ONU, Juan Ernesto Méndez, 69, diz estar disposto a visitar os presídios do Maranhão, inclusive o de Pedrinhas.

"Seria bem útil se o Estado do Maranhão se dirigisse ao Itamaraty para pedir que indique observadores internacionais, facilitaria muito as coisas", afirmou ele.

Como relator membro do Alto Comissariado para Direitos Humanos, com sede em Genebra, o argentino é a autoridade máxima da ONU sobre os crimes de tortura, principalmente em penitenciárias.

Ele diz que ainda há esperança de reverter o cenário das cadeias brasileiras.

Folha - É a primeira vez que o sr. vê cenas de decapitação?
Juan Ernesto Méndez - Já vi cenas de mortes entre presos, outros crimes, mas é a primeira vez que eu vejo decapitação, o que não significa que não tenha ocorrido. Depois que vi essas terríveis imagens em Pedrinhas, pedi à minha equipe de Genebra que analise o assunto.

O senhor poderia visitar o Maranhão como relator da ONU?
Sim, mas preciso ser convidado, tem que ter um convite específico. Por exemplo, eu pedi que fosse convidado a visitar Guantánamo (EUA), mas me convidaram em condições que não posso aceitar. A visita não pode ser guiada, tenho que visitar todas as partes da prisão, conversar com o presos diretamente. Se não me deixam falar com os presos diretamente, não posso ir, é parte da regra do meu trabalho.

A pressão internacional poderia contribuir para amenizar essa crise?
É sempre útil que observadores internacionais façam essas visitas. Seria bem útil se o Estado do Maranhão se dirigisse ao Itamaraty para pedir que indique observadores internacionais, facilitaria muito as coisas. Eu estaria disposto a ir se me convidassem ou avaliaríamos se iria o subcomitê de Direitos Humanos.

Na sua função na ONU, tem encontrado situações parecidas em outros países?
Lamentavelmente sim, principalmente na América Latina, onde a situação é: coloca a pessoa presa e fecha a porta. No interior das prisões há muita liberdade e essa liberdade também vira muito caos e descontrole. Em lugares como Honduras, México, Brasil e Venezuela, temos encontrado muitos episódios de violência, em alguns casos motins, outros entre facções.

Há solução a curto prazo?
Temos que ter uma bateria de soluções. A experiência demonstra que, quanto mais se cria presídios, mais se enche as prisões. É preciso criar medidas de regeneração, baixar as penas, melhorar acesso à liberdade condicional.

O senhor citou medidas para regenerar o preso. É possível a essa altura avançar nesse sentido?
É fundamental e isso faz parte da regra mínima de tratamento dos prisioneiros, de necessidade de restabelecê-los. Muitos países, como o Brasil, abandonaram a ideia de recuperação. Todos deveríamos pensar que é um grande erro abandonar a ideia de recuperação social e moral deles. Há esperança, não podemos perdê-la, senão mais tragédias como essa do Maranhão vão ocorrer.

Temos no Brasil a imagem de que o preso sai pior do que entrou. O senhor concorda?

Exatamente. Creio que a imagem é correta, mas é derrotista pensar que não se pode fazer nada. Há bastante experiências em políticas penais que se pode compartilhar. Não depende de recursos, porque há países que têm sistema penitenciário exemplar e decente e sem dinheiro. Na África, por exemplo, as condições físicas são ruins, mas o tratamento dos presos não é tão mal, há uma boa intenção em relação a eles.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Kenarik Boujikian: “Onde Roseana Sarney esteve nos últimos anos?”

Desembargadora diz que reação de “surpresa” da governadora do Maranhão com a situação de Pedrinhas “só mostra o descaso do Estado em relação à questão prisional” 
 Por Conceição Lemes, no Viomundo 

Levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) registrou, de fevereiro de 2012 a março de 2013, 121 rebeliões e 769 mortes em 1.598 estabelecimentos do País, além de 2.772 lesões corporais. Uma média de 2,1 mortes por dia dentro dos presídios. 

“Os fatos ocorridos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas não nos surpreendem, pois não se trata de algo novo e a situação só vem se agravando lá”, afirma a desembargadora Kenarik Boujikian, presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Surpreendente é a reação da governadora Roseana Sarney.Onde ela esteve nos últimos anos? Em Marte? Isso só mostra o descaso do Estado em relação à questão prisional.” 

Nessa quinta-feira 9, a governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PMDB), disse que se surpreendeu com a crise no sistema prisional no estado que administra. Foi por aí que comecei a entrevista com a desembargadora Kenarik Boujikian, presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD). 

Viomundo – A governadora Roseana Sarney (PMDB) disse nessa quinta-feira 9 que se surpreendeu com a crise no sistema prisional do Maranhão. A senhora se surpreendeu? 
Kenarik Boujikian — Claro que não! Os fatos ocorridos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas não nos surpreendem, pois não se trata de fato novo e a situação só vem se agravando lá. É a mesma penitenciária que, em 2002, teve uma rebelião que deixou 27 detentos mortos. Surpreendente, para dizer o mínimo, é a reação da governadora do Maranhão. Onde Roseana Sarney esteve nos últimos anos? Em Marte? Isso só mostra o descaso do Estado em relação à questão prisional. Estou pasma até agora com a declaração dela. É inconcebível! Veja bem. Em 2006, a Vigilância Sanitária do Estado do Maranhão emitiu relatório condenando as condições de salubridade desse presídio. O juiz Fernando Mendonça interditou-o parcialmente. Decidiu pela proibição de ingresso de qualquer preso a qualquer título nas unidades prisionais daquele complexo prisional até que a equação de uma vaga por preso fosse alcançada. Os dados recentes, porém, mostram que essa decisão não foi aplicada e os problemas apontados pelo juiz maranhense somente se intensificaram. Além disso, esta espécie de fatos não ocorre só no complexo de Pedrinhas. Em novembro de 2010, tivemos a morte de 18 presos em Pinheiros, também no Maranhão. O que foi feito para se garantir ao menos a vida das pessoas que lá estão entulhadas? Nada! Há um pacto social que permite ao Estado usar a força e prender as pessoas. Mas esse mesmo pacto prevê que este mesmo Estado tem obrigações com os detidos e com a população. Só que há um total descumprimento do pacto pelo Estado. Esquece-se que um dia todas as pessoas presas sairão detrás dos muros. 
Viomundo — Hoje o foco da mídia está principalmente em Pedrinhas, mas penitenciárias em São Paulo, Rio de Janeiro, Piauí, Espírito Santo já foram palco de ações violentas e mortes de detentos. O problema é nacional? 
Kenarik Boujikian — Os fatos se repetem de norte a sul do Brasil. Lembremos alguns mais conhecidos. Por exemplo, a rebelião no Presídio Urso Branco, em Porto Velho (RO), em 2002, com 27 mortos. O Massacre do Carandiru, em São Paulo, em 1992, quando 111 detentos foram assassinados pela tropa de choque da Polícia Militar. O caso da Penitenciária Central de Porto Alegre, construída para receber 1.984 pessoas, mas que atualmente abriga 4.591. São situações em que o Brasil foi levado a julgamento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Mas tão grave quanto esses casos que chegaram ao conhecimento do público em geral é o cotidiano das prisões, a invisibilidade do sistema. O descaso é generalizado e infinito o número de violações aos direitos humanos cometidos dentro do sistema prisional. 
Viomundo — A violência nos presídios está ligados a que fatores? Qual o peso das facções criminosas? 
Kenarik Boujikian — A violência no sistema carcerário tem sua origem mais densa na própria ação/omissão do Estado. Os mutirões carcerários indicam uma série de violações que ocorrem em presídios. Particularmente, o que se constata é que o poder estatal não assegura aos presos condições de respeito à dignidade humana. O cumprimento da pena em celas superlotadas, fétidas, escuras, úmidas, sem colchões, sem espaço, água imprópria ao consumo humano pode ser classificada como cruel e degradante. Esse quadro é agravado pela negação dos direitos do preso, como direito ao trabalho, ao estudo, ao recebimento de visitas, de alimentação, de votar, etc… Por certo que, diante da ausência do Estado, as facções se fortalecem e ocupam o lugar, do jeito que bem entendem. E isso também ocorre Brasil afora. 
Viomundo – Há décadas eu ouço falar da superpopulação dos presídios. Basta construir mais presídios? 
Kenarik Boujikian — Já está provado que apenas construir prisões não solucionará a questão da superlotação carcerária. É só ver os números brasileiros. O que nós temos é o gradativo aumento do número de presídios e de encarceramento, em níveis alarmantes para homens e ainda maiores para as mulheres. 
Viomundo – Mas a mídia reforça a ideia de que prisão é solução para todo tipo de criminalidade e que as penas devem ser maiores. 
Kenarik Boujikian – Os estudos e os dados mostram que isso é mentira. 
Viomundo – Quantas vagas têm os complexos penitenciários do Brasil? 
Kenarik Boujikian — Segundo dados de dezembro do Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen) do Ministério da Justiça, 548 mil pessoas compõem a população carcerária no Brasil, mas os complexos penitenciários dispõem de apenas 310,6 mil vagas. 
Viomundo — Não está na hora de se discutir para valer penas alternativas para crimes de menor gravidade? Elas poderiam ser parte de uma solução de longo prazo? 
Kenarik Boujikian — Essa é uma solução possível, mas não só as penas alternativas, como também a quantidade das penas, melhoria do sistema, fortalecimento das Defensorias Públicas, etc… Em geral, as pessoas não têm a menor noção do significado que é ficar um dia na prisão. 
Viomundo — Está cada vez mais presente no Brasil o discurso, amplificado pela mídia, em favor do endurecimento penal, prisão perpétua, Rota na rua, redução da maioridade penal… O endurecimento penal por si só reduziria a criminalidade? 
Kenarik Boujikian — O endurecimento penal, em todas as suas formas, como a criação de novos crimes, penas maiores, regime de pena mais grave, não reduz a criminalidade. O exemplo bem vivo entre nós é o da chamada lei de crimes hediondos, que estipulava que a pena deveria ser cumprida em regime fechado. Passado um tempo, verificou-se que as prisões estavam superlotadas, aumentava o número de presos. Portanto, a lei não serviu para que as pessoas não praticassem crimes. Outro tema que volta e meia vem a tona é a questão da redução da menoridade penal, o que sequer é possível, diante da rigidez da norma constitucional. 
Viomundo – Como a mídia poderia ajudar? 
Kenarik Boujikian — Penso que a mídia tem o papel de contribuir para construir uma sociedade justa e solidária. Deve expender esforços para o aprofundamento da democracia, que somente será alcançada quando os direitos civis, políticos sociais e econômicos forem concretizados. Neste contexto, é importante fornecer dados para população sobre os efeitos da prisionalização, o funcionamento do sistema, as verdades e mentiras sobre as consequências de endurecer as penas. O que parece é que a imprensa apenas fomenta as soluções hipócritas. Um exemplo bem concreto. Fala-se muito em proibição de uso de telefones para impedir a atuação do crime organizado. Alguém em sã consciência pode dizer que não entram celulares nas prisões? Alguém pode assegurar que é o telefone que vai impedir o funcionamento do crime organizado? Os telefones entram no sistema prisional e aqueles que não têm acesso — a maioria dos presos — ficam nas mãos dos que têm. Não seria mais lógico e razoável que se instalasse telefones públicos nas prisões, como existe em outros países? 
Viomundo – A mídia gritaria contra. 
Kenarik Boujikian — Certamente isso irá escandalizar algumas pessoas, mas o fato é que com a permissão, a grande maioria dos presos, que usa o telefone para falar com a família, não ficaria à mercê dos presos que conseguem os celulares. Este é apenas um exemplo singelo da falta de racionalidade do sistema. O fato principal é que é indispensável repensar os conceitos de crime, justiça e pena. Sem essa revisão séria, com o olhar voltado para o que ocorre dentro dos muros, issojamais será alcançado.

Bruno Shimizu e Patrick Caciedo: Pedrinhas por todos os cantos


A visão de corpos mortos, perfurados, decapitados no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís/MA, atingiu a opinião pública como um golpe, confundindo certezas pré-concebidas acerca das práticas punitivas no Brasil. Por certo, eram corpos matáveis, desimportantes, corpos negros e pardos, anônimos. Nenhuma novidade. Mas as imagens não são tão facilmente ignoradas quanto estatísticas ou discursos de militantes de direitos humanos. As imagens pintam em cores fortes o genocídio invisível e silencioso diuturnamente posto em marcha por nosso sistema penal.
As mais de duas décadas de caminhada pela democratização da sociedade brasileira foram caracterizadas pela espantosa hipertrofia do Estado policial: além da prática de tortura e mortes institucionalizadas, houve um crescimento exponencial do encarceramento e da piora das condições a que estão submetidas as pessoas presas.
A punição, no Brasil, afigura-se como espaço de exceção à legalidade. Nenhum dos Poderes constituídos assume a responsabilidade pela gestão dos amontoados de miseráveis que ocupam as masmorras brasileiras. O Judiciário, que controla a entrada e a saída do sistema, mostra-se extremamente rigoroso na aplicação das penas, mas, de forma contraditória, entende que a gestão da execução penal compete exclusivamente ao Executivo. O Executivo, por sua vez, escuda-se por trás de argumentos orçamentários para deixar de cumprir a Lei de Execuções Penais e a Constituição Federal, valendo-se da invisibilidade do cárcere para que as violações extremas de direitos fundamentais não sejam denunciadas. A tudo isso se soma a postura ideológica dos operadores do sistema penal, no sentido de promoção do encarceramento em massa da pobreza como forma de contenção de demandas sociais e neutralização das classes marginalizadas.
A situação evidenciada no Complexo Penitenciário de Pedrinhas não se afasta, em termos de precariedade e descaso, da maioria das unidades prisionais do Estado de São Paulo. Com superlotação maior do que a de Pedrinhas, o Centro de Detenção Provisória da Praia Grande possui 1.652 presos para 512 vagas. Disputam o mesmo espaço presos condenados e esperando julgamento, presos que aguardam vaga em regime semiaberto e até mesmo pessoas com transtorno mental, para as quais a legislação proíbe a prisão. Nesse ambiente, não contam com profissionais de saúde, educação ou trabalho; não recebem produtos básicos de vestuário e higiene; a água é racionada e insuficiente para saciar a sede ou mesmo tomar banho; recebem visita de familiares traumatizados após uma humilhante revista.
Diante do quadro de barbárie, o Tribunal de Justiça foi chamado a se manifestar e, em uma das ações, afirmou que a situação não demandava urgência, pois "a população carcerária do local, de uma forma ou outra, tem sobrevivido, (sem) rebeliões, fuga ou morte entre presos."
O exemplo acima denuncia o temerário abstencionismo do poder Público e, notadamente, do poder Judiciário, que deveria ser o guardião dos direitos fundamentais e, ao revés, aguarda passivamente que os eventos lamentáveis ocorridos em Pedrinhas repitam-se e, de preferência, sejam filmados e expostos na mídia, para, apenas então, quem sabe, sair de sua zona de conforto. Por ora, os doutores permanecem desviando o olhar da bomba-relógio carcerária, esperando que o caso seja esquecido. Enquanto isso, nas celas, nos raios e pavilhões, fora das vistas de todos, o descaso diante da dor silenciosa acelera a ruína da equivocada política de "segurança" de encarceramento em massa, sendo o caso de Pedrinhas apenas um exemplo do quão trágico pode ser o colapso que se prenuncia.

BRUNO SHIMIZU, 29, e PATRICK CACIEDO, 31, são defensores públicos do Estado de São Paulo e coordenadores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

SP: Ato pela libertação de moradores de rua fecha avenidas e atrai dezenas de PMs

da Rede Brasil Atual

http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/01/mesmo-com-grupo-pequeno-ato-pela-libertacao-de-presos-bloqueia-trafego-e-atrai-dezenas-de-pms-em-sp-500.html

Quatro pessoas em situação de rua estão presas desde manifestação por melhores condições em centro de acolhida, no dia 30 de dezembro. Grupo promete novas atos na semana que vem

por Gisele Brito, da RBA publicado 04/01/2014 11:33


São Paulo – "Semana que vem vai ser maior", gritavam manifestantes ao final do segundo protesto pela libertação de quatro pessoas em situação de rua, realizado no início da noite de ontem(3), no centro de São Paulo. O auxiliar de limpeza Hudson Bernardo da Silva, de 23 anos; o entrevistador Enmanuel William de Oliveira, 25; o pedreiro Vantuir Guedes de Assis, 49; e o aposentado Alexandro Costa dos Santos, 53, foram presos pela PM no último dia 30, quando participavam de um ato pela melhoria nas condições do Centro de Acolhida Estação Vivência, no Canindé, região central da capital paulista. O novo protesto ainda não tem data para acontecer.


A frase parodiava um dos mais célebres brados dos manifestantes que saíram às ruas em junho do ano passado para pedir a redução da tarifa do transporte pública. Dessa vez, no entanto, não foi preciso centenas de milhares de pessoas para parar ruas da cidade e atrair a atenção de um grande contingente da polícia.


A manifestação, organizada pelo Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais e pelo Padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua, não reuniu mais de 50 pessoas. Durante cerca de três horas, o grupo percorreu ruas dos bairros da Armênia, Canindé e Luz tocando instrumentos de percussão e entoando palavras de ordem, como "o povo de rua é meu amigo, mexeu com eles, mexeu comigo".


Depois de fechar um cruzamento da Avenida Cruzeiro do Sul por alguns minutos, o grupo foi alcançado por grupamentos de policiais militares em motos, carros e homens da força tática portando lançadores de bombas de gás. Incitados pela presença dos militares, alguns dos manifestantes assumiram a identidade black bloc, e passaram a vestir máscaras.


Apesar da tensão, não houve qualquer confronto. "A ideia é continuar nas ruas, parando a cidade. Não precisa de muita gente para fazer isso. Nossa luta não é institucional, é nas ruas", afirmou um dos porta-vozes do Coletivo dos Trabalhadores Sociais Autônomos, Paulo Escobar. Do ponto de vista institucional, a defensoria aguarda o final do recesso do Judiciário, na próxima segunda-feira (6), para entrar com um pedido de liberação dos quatro homens.


Segundo o Padre Julio, os presos foram transferidos para o Centro de Detenção Provisória Belém 2. Há dois dias, um pedido de habeas corpus inpetrado pela Defensoria Pública foi negado, mesmo após a intervenção da pastoral, que garantiu um endereço de referência dos detidos. "Inicialmente disseram que eles todos tinham ficha criminal. Mas três deles não têm antecedentes", defendeu.


Muitas pessoas em situação de rua acompanharam a manifestação, como Claudio Gonçalves, que aproveitava o percurso para catar latas de alumínio. "Eu nunca vi tanto policial na minha vida. Só quando estava preso", ironizou.


Claudio repete uma reclamação recorrente entre os usuários dos serviços de assistência social oferecidos pela cidade. "Todos os albergues são ruins. As assistentes sociais tratam você que nem lixo. Por isso é melhor ficar na rua. Eu só vou lá tomar banho e pronto", explica.


Mas os albergues ainda são um equipamento público importante e demandado por muitos. Mesmo depois de todos os problemas relatados no Estação Vivência, era possível ver dezenas de homens dentro das instalações e outros chegando para passar a noite. "Dentro você está seguro, não corre o risco de alguém te matar, pelo menos", afirma Alex Sandro Lima, que vive e trabalha no complexo Prates, outro albergue municipal.


No Estação Vivência, onde ocorreram os protestos do dia 30, nenhum dos usuários abordados pela RBA durante o protesto de ontem quis comentar as condições das instalações. "Todo mundo aqui dentro tem o que falar, mas 'não pode'", disse um deles, através das grades que cercam o espaço. Procurada, a coordenação também não quis se pronunciar.


Os serviços prestados pelo centro são mantidos pela organização não-governamental Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana em parceria com a prefeitura. Os usuários reclamam de falta de higiene, banheiros entupidos, falta de água e maus tratos, situação semelhante à das ruas. "E as pessoas vão para lá para serem acolhidas, para terem atendimento a essas carências", explicou o padre Julio.


Segundo o vice-presidente do Conselho Municipal de Assistência Social, Fracis Larry Santana Lisboa, há pelo menos dois anos há denúncias sobre o atendimento prestado no Estação Vivência. "É um problema que vem de muito tempo e sobre o qual nós não vemos perspectiva de melhora", afirmou.


Ele lembra que, se em gestões anteriores havia críticas pela não abertura de novas vagas para atender a população de rua em albergues, na administração de Fernando Haddad (PT), que entra em seu segundo ano, o problema é a abertura de centros de atendimento que fogem dos padrões. "A lei diz que tem de ter 50 pessoas (atendidas). Aqui em São Paulo temos albergues com mais de mil. Não tem como dar atendimento adequado assim", exemplificou.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Regulamentada lei que cria Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

"Yes and how many times can a man turn his head
Pretend that he just doesn't see?"

No final de 2013 foi publicado o Decreto Presidencial nº 8.154, de 16 de dezembro de 2013, que regulamenta o funcionamento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a composição e o funcionamento do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e dispõe sobre o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O texto integral está disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8154.htm. Este decreto regulamenta a Lei nº 12.847/2013, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12847.htm . A estruturação deste sistema de combate à tortura decorre da ratificação, pelo Brasil, do Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/OPCAT.pdf.

O Comitê será composto por 23 membros (11 representantes de órgãos do Poder Executivo federal e 12 de conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil). Já o Mecanismo deverá composto por 11 peritos escolhidos pelo Comitê.


O colegiado terá diversas prerrogativas, podendo visitar, sem aviso prévio, qualquer local de privação de liberdade, como presídios, penitenciárias, delegacias, casas de custódia, instituições socioeducativas, hospitais psiquiátricos e asilos.

Em tempos em que denúncias de diversas violações a direitos de pessoas encarceradas são noticiadas (em especial nas carceragens de Pedrinhas, no Maranhão, e no Presídio Central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul), torna-se premente buscar a efetividade destes instrumentos de prevenção e combate.

É possível (e necessária), ainda, a criação de sistemas estaduais, o que vem sendo debatido em diversas instâncias no estado de São Paulo, sendo certo que se trata de medida de grande importância para ajudar na explicitação de casos de tortura. 

Veja mais sobre o "Mecanismo" aqui: http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/dilma-sanciona-lei-de-combate-a-tortura
Veja notícias recentes sobre violações a direitos de pessoas encarceradas aqui: http://www.conjur.com.br/2014-jan-03/oea-manda-uniao-resolver-problemas-presidio-central-porto-alegre e http://www.conjur.com.br/2013-dez-28/estado-maranhao-incapaz-conter-violencia-presidios-cnj