segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Nova classe perigosa?

Texto de Ruy Braga Publicado no blog da Boitempo



O livro de Guy Standing, O precariado: a nova classe perigosa (São Paulo, Autêntica, 2013), acabou de ser publicado no Brasil. Trata-se de uma dessas aguardadas análises que chegou na hora certa. Um dos mais impactantes livros sobre o mundo do trabalho lançado nas últimas décadas, ele já surgiu com ares de “clássico” por ser capaz de traduzir em dados o espírito de toda uma época: vivemos sob a sombra do “precariado”, isto é, um novo grupo de pessoas despojadas de garantias trabalhistas, submetidas a rendimentos incertos e carentes de uma identidade apoiada sobre o trabalho. Em larga medida, da qualidade da ação coletiva deste grupo depende o futuro dos movimentos sociais globais.

A descrição que Standing faz das razões pelas quais a globalização econômica por meio da flexibilidade do trabalho ampliou incessantemente o tamanho do precariado é verdadeiramente arrasadora. A mercantilização do trabalho associada tanto ao aprofundamento da concorrência intercapitalista quanto à financeirização do meio ambiente empresarial reviveu o pesadelo de Karl Polanyi. Como é sabido, para o grande sociólogo húngaro, ao açambarcar as três mercadorias fictícias – isto é, o dinheiro, o trabalho e a terra –, o capitalismo colocaria em risco o conjunto da reprodução social.

Em seu belo volume, Standing enfrentou os desafios levantados por Polanyi há exatos setenta anos. Além de criticar a liberdade de movimentos e a concentração dos capitais financeiros, ele denunciou os efeitos deletérios da submissão de parte substantiva do movimento sindical europeu e de setores predominantes do mainstream político social-democrata a um modelo de desenvolvimento socialmente irresponsável e ecologicamente insustentável. No entanto, seu foco principal é o advento e o destino histórico do precariado como uma nova classe em transformação.

Poderia passar muito mais tempo simplesmente realçando os superlativos méritos do livro. No entanto, estou entre aqueles que consideram que um estudo desta qualidade sempre estimulará o desejo de discutir e de argumentar. Adianto que, ao contrário da maior parte dos exemplos e dados presentes no livro cujo foco recai sobre as relações trabalhistas em países de capitalismo avançado comentarei o livro da perspectiva de alguém que estuda as metamorfoses do capitalismo e da classe trabalhadora no chamado “Sul global”.

Talvez isto seja de alguma valia ao debate. Afinal, em minha opinião, Standing concentra-se excessivamente na ampliação do precariado em países de capitalismo avançado, sobrando pouco espaço para a maior parte da força de trabalho mundial que se encontra submetida a condições severamente piores de precariedade laboral do que aquelas encontradas na Europa ocidental. De fato, uma parte significativa das ameaçadoras relações sociais tão bem analisadas no livro parecem incrivelmente familiares à sensibilidade daqueles que se especializaram em pesquisar, por exemplo, a resiliência histórica do trabalho informal nas economias do Sul global.

Por essa razão, dentre as inúmeras possibilidades de interlocução com o livro, tentarei me concentrar em apenas duas variáveis do precariado global, isto é sua natureza de classe e seus padrões de mobilização coletiva. Standing compreende que o precariado não faz parte da classe trabalhadora. Ao contrário, ele constituiria uma classe social de novo tipo produto das transformações decorrentes da globalização capitalista e das estratégias de flexibilização do trabalho em suas múltiplas dimensões. De uma certa maneira, o precariado seria o filho indesejado do casamento do neoliberalismo com a globalização do capital.

Esta união teria engendrado uma nova classe formada basicamente por pessoas destituídas das garantias sociais relativas ao vínculo empregatício, à segurança no emprego, à segurança no trabalho, às formas de reprodução das qualificações, à segurança da renda e à falta de representação política. Tudo aquilo que configurou a robustez, na Europa e nos Estados Unidos, sobretudo, da cidadania salarial fordista após a Segunda Guerra Mundial e que estaria sendo negado à geração dos filhos dos babyboomers.

Em termos históricos, Standing entende que o precariado afasta-se da classe trabalhadora, pelo fato desta sugerir uma sociedade formada majoritariamente por:

“(…) Trabalhadores de longo prazo, em empregos estáveis de horas fixas, com rotas de promoção estabelecidas, sujeitos a acordos de sindicalização e coletivos, com cargos que seus pais e mães teriam entendido, defrontando-se com empregadores locais cujos nomes e características eles estavam familiarizados” (Standing, 2013: 22-23).

Em nossa opinião, esta definição aproxima-se mais do conceito de “salariado” – criado pelos economistas da Escola Francesa da Regulação e enriquecido por sociólogos críticos, como o saudoso Robert Castel, por exemplo, para apreender o tipo de norma social de consumo própria ao modelo de desenvolvimento fordista – do que do clássico conceito de “proletariado” ou mesmo de “classe trabalhadora”. Nunca é demais lembrar que, para Marx, em decorrência da mercantilização do trabalho, do caráter capitalista da divisão do trabalho e da anarquia da reprodução do capital, a precariedade é parte constitutiva da relação salarial.

Em termos marxistas, o aprofundamento da precarização laboral em escala global apoia-se no aumento da taxa de exploração da força de trabalho tendo em vista, sobretudo, a espoliação dos direitos sociais associada à acumulação por desapossamento. Em todo caso, não nos parece razoável falar em uma relação de produção de novo tipo capaz de produzir uma “nova classe”. Antes, trata-se de um retrocesso em termos civilizatórios potencializado pelo ciclo de acumulação desacelerada que se arrasta desde, ao menos, meados dos anos 1970 e cujos desdobramentos, potencializados pela crise atual, em termos da deterioração do padrão de vida dos trabalhadores e assalariados médios tornaram-se mais salientes a partir de 2008.

Se, ao menos, na Europa ocidental e nos Estados Unidos, décadas de institucionalização de direitos sociais mitigaram a condição estruturalmente precária do trabalho assalariado, integrando a fração masculina, branca, adulta, nacional e sindicalizada da classe trabalhadora ao ciclo “virtuoso” da transferência de parte dos ganhos de produtividade aos salários, a transformação de um longo período de crescimento lento em uma crise econômica sistêmica trouxe novamente à baila a precariedade laboral como um traço ineliminável da mercantilização do trabalho.

Com isso, gostaria apenas de dizer que a ausência de um sentido de carreira, de identidade profissional segura e de direitos trabalhistas, são traços que, grosso modo, sempre estiveram presentes na própria definição da força de trabalho fordista no Brasil. E estas características continuam presentes nos dias de hoje. Apenas para efeitos comparativos, entre 2003 e 2010, um período marcado por flagrante crescimento econômico com formalização do emprego, a atual taxa de informalidade do trabalho no Brasil ainda é de 44%. Vale lembrar que, no sul da Europa, mesmo após cinco anos de forte crise econômica, esta taxa gravita em torno de 20%.

Uma mirada na formação do precariado europeu de uma perspectiva brasileira talvez também seja útil para problematizar aquela que constitui a grande contribuição de Standing ao debate público contemporâneo: o alerta sobre a natureza “perigosa”, isto é, filo-fascista, desta nova classe. De fato, o autor constrói ao longo do livro uma imagem do precariado como sendo uma classe alienada, ansiosa, insegura, infantilizada, oportunista, cínica, passiva – tanto mental, como politicamente –, além de detentora de um estado psíquico nebuloso. Não é de se estranhar, portanto, que, do ponto de vista político, o precariado seja considerado potencialmente hostil ao regime democrático, além de uma presa fácil dos apelos direitistas.

Gostaria de me deter sobre este ponto, qual seja, a “política do precariado”, por um momento. Se, por um lado, Standing nitidamente acerta ao destacar os jovens recém-chegados ao mercado de trabalho, especialmente, os estagiários e os operadores de telemarketing, como o grupo mais representativo entre os que irão desenvolver uma trajetória ocupacional frustrante e apartada daquela bem mais estável verificada por seus pais, por outro, sua caracterização a respeito da relação destes jovens com os sindicatos merece um olhar mais detido. Em suma, o autor identificou uma postura ressentida e anti-sindical por parte significativa do precariado.

Devido, sobretudo, ao fato de que os trabalhadores jovens e politicamente inexperientes, cada dia mais submetidos a empregos temporários, considerarem impossível formar associações coletivas no processo de produção seria a razão da saliente hostilidade em relação ao movimento sindical. Afinal, o precariado associaria os sindicatos aos “privilégios” reservados aos assalariados mais velhos e que ainda desfrutam da proteção de um tipo de compromisso social em flagrante desintegração.

Para Standing, fazer frente ao enorme desafio social representado pelo crescimento ininterrupto desta classe alienada em vias de se deixar seduzir por apelos populistas e iniciativas autoritárias implica substituir a agenda sindical por uma nova agenda de segurança econômica e de mobilidade social apoiada sobre uma reforma das políticas públicas. Como os sindicatos tenderiam a se enfraquecer a cada dia e, consequentemente, tombar sobre seu próprio egoísmo burocrático, eles, supostamente, não poderiam construir soluções políticas capazes de fortalecer a universalização dos direitos sociais necessária para fazer frente ao crescimento do precariado.

O fato curioso é que, em 2004, quando iniciei minha pesquisa de campo a respeito dos operadores de telemarketing em São Paulo, eu próprio sustentava expectativas bastante semelhantes no tocante à consciência sindical destes jovens trabalhadores. E como poderia ser diferente se, neste setor, prevaleciam os baixos salários, os contratos temporários, a alta rotatividade, a hostilidade aos sindicatos, a inexperiência política e os desejos individualistas de consumo? Conforme a pesquisa evoluiu, no entanto, fui me dando conta de que uma realidade acentuadamente diferente, senão, totalmente contrária, prevalecia neste setor.

O que aconteceria se, aos olhos dos jovens trabalhadores precarizados, ao invés de representar os privilégios inalcançáveis da geração anterior, os sindicatos anunciassem a possibilidade de acender aos direitos sociais que foram negados a seus pais? Foi exatamente essa a realidade que encontrei ao estudar a relação dos operadores de telemarketing da indústria paulistana do call center com o movimento sindical que atua no setor. E, nos últimos 15 anos, os sindicatos têm se empenhado em atualizar suas táticas a fim de se aproximarem da massa de trabalhadores jovens que todos os anos acorre às empresas do setor.

Além disso, os próprios teleoperadores, apesar de sua inexperiência política, aproximam-se fatalmente dos sindicatos em busca de apoio a suas reivindicações trabalhistas. E como poderia ser diferente se, no setor, tende a imperar a dura realidade dos baixos salários, da alta rotatividade, do adoecimento, do assédio moral, etc.? O aprofundamento da experiência com o regime de trabalho despótico da indústria do call center tende a promover não apenas comportamentos críticos em relação às empresas, como também o desenvolvimento de formas embrionárias de consciência de classe que são potencializadas pelos sindicatos. O resultado desta aproximação entre os teleoperadores e o sindicalismo pode ser medido, por exemplo, pelo aumento da participação destes trabalhadores nas greves nacionais bancárias dos últimos anos.

Um contra-argumento legítimo seria invocar a excepcionalidade do caso brasileiro a fim de mitigar a força deste exemplo. Afinal, há dez anos o país é governado pelo Partido dos Trabalhadores e a crise internacional não teria atingido o país como o fez na Europa. E, mesmo com uma taxa de crescimento abaixo da média dos anos 2000, a estrutura social do Brasil continua a criar milhões de empregos formais todos os anos. Exatamente por isso, gostaríamos de invocar outro estudo de caso para pensarmos a suposta incompatibilidade política identificada por Standing entre o precariado e o movimento sindical, isto é, o caso de Portugal.

Trata-se de um exemplo emblemático do crescimento do precariado motivado pela crise econômica mundial. Desde 2008, a taxa de desemprego aumenta no país e as relações trabalhistas estão sendo submetidas a condições cada vez mais precárias. O desemprego e o subemprego atingem mais da metade da população economicamente ativa entre os 15 e os 35 anos. Para os jovens, praticamente não há perspectivas de contratação que não seja por meio de vínculos intermitentes. A massa salarial diminuiu e o Estado avança nos cortes de gastos e nas demissões motivadas pela adoção das medidas de austeridade acertadas com a Troika (isto é, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional).

Pois bem, qual tem sido a reação dos jovens trabalhadores precarizados portugueses frente ao assalto a seus direitos sociais? Desde 2011, eles investem em massivas manifestações de protesto contra as medidas do governo de Pedro Passos Coelho. As maiores foram, sem dúvidas, organizadas pelo movimento “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!” e ocorreram nos dias 15 de setembro de 2012 e 2 de março de 2013, acantonando mais de 1 milhão de pessoas cada nas principais cidades do país. Animado por cerca de uma dezena de associações de trabalhadores precarizados, como os “Precários Inflexíveis”, por exemplo, desde o início o movimento “Que se lixe a troika!” convidou os sindicatos e, mais precisamente, a Central Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), a integrarem os protestos.

A resposta do movimento sindical foi bastante positiva: além de participarem das marchas, os sindicatos convocaram greves gerais, reforçando as demandas contra a precarização do trabalho em suas campanhas. Ao contrário de uma hostilidade dos jovens em relação aos sindicatos, percebe-se uma relação tensa, porém, marcadamente solidária, em termos políticos. Na realidade, os jovens mobilizam-se para defender os direitos sociais conquistados por seus pais e vêem os sindicatos como aliados e não como adversários de sua luta.

Existem inúmeras diferenças entre os casos brasileiro e português. Os jovens trabalhadores no Brasil, por exemplo, lutam por efetivar direitos enquanto os portugueses mobilizam-se para conservar direitos sociais. Além disso, há muitas diferenças em termos de composição social e qualificação do trabalho separando estes jovens. Uns olham para o futuro com um certo otimismo, enquanto outros vivem o pesadelo de não enxergar futuro algum. No entanto, em ambos os casos, não há evidentemente hostilidade ao regime democrático. Muito ao contrário, a práxis política desses grupos é marcadamente progressista.


Finalmente, diríamos que o livro de Guy Standing é uma obra fascinante não apenas pelas questões que ilumina, mas, sobretudo, pelas polêmicas que é capaz de nutrir. A discussão sobre se o precariado é ou não uma “nova classe” apartada do proletariado e com interesses contrários ao movimento sindical é uma destas questões polêmicas que merece ser debatida. Afinal, estamos convencidos de que é da qualidade da ação coletiva deste jovem precariado global que depende o futuro dos movimentos sociais.

Publicado em http://blogdaboitempo.com.br/

domingo, 16 de fevereiro de 2014

"Sem os movimentos populares, Haddad não terá como enfrentar o capital imobiliário"

De http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Movimentos-Sociais/-Sem-os-movimentos-populares-Haddad-nao-tera-como-enfrentar-o-capital-imobiliario-/2/30268

Um dos grandes fenômenos sociais da atualidade, a luta pela moradia nas grandes cidades, ganhou um capítulo marcante neste início de ano, com a imensa ocupação entre os bairros de Jardim Ângela e Capão Redondo (zona sul da capital paulista), denominada Nova Palestina e formada por cerca de 8000 famílias.

“Agora, a realidade é que está se tornando cada vez mais fácil fazer ocupação urbana, por um motivo que não é bom: o aumento da demanda. As famílias estão, cada dia mais, sem outra alternativa, a não ser a ocupação de terra, para ter assegurado seu direito à moradia”, constata Guilherme Boulos, membro do MTST, em entrevista ao Correio da Cidadania.

Para explicar o aumento do déficit habitacional brasileiro, recentemente difundido em matéria da mídia, Boulos aponta um velho ponto central. “Para lidar e ter a negociação correta com as ocupações em curso, passa-se, essencialmente, pela questão fundiária, pelo valor da terra. Hoje, nós vivemos uma situação no Brasil, nos grandes centros urbanos, em que há recursos para construção, através do programa Minha Casa Minha Vida, mas não há terra. Porque a terra é muito cara e o recurso não dá conta disso”.

Guilherme Boulos também conta um pouco das atuais dinâmicas da luta por moradia em São Paulo, traçando paralelos entre as lutas dos sem teto e dos sem terra, que, como aponta, se posicionam contra duas grandes pontas de lança da atual economia brasileira: o agronegócio do campo e as grandes incorporadoras nas metrópoles.

A entrevista completa, realizada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Inicialmente, você poderia nos contar como se deu a Ocupação Nova Palestina e sua organização? Como foi a articulação de um número tão alto de famílias?

Guilherme Boulos: A Nova Palestina hoje reúne cerca de 8.000 famílias, e há mais 2.000 na lista de espera. A maior parte estava morando de aluguel, de favor em casa de parentes (o que se chama coabitação), áreas de risco, barracos e em situação precária. E aqueles que moravam de aluguel tinham mais da metade da renda familiar comprometida.

Esse é o drama que tem atingido cada vez mais famílias, com o aumento da especulação imobiliária e o avanço do valor dos aluguéis, mesmo nas regiões periféricas. Neste sentido, o claro movimento de modernização, naquela região do Jardim Ângela e Capão Redondo, vem de longa data.

Agora, a realidade é que está se tornando cada vez mais fácil fazer ocupação urbana, por um motivo que não é bom: o aumento da demanda. As famílias estão, cada dia mais, sem outra alternativa, a não ser a ocupação de terra, para ter assegurado seu direito à moradia.

Está insuportável o aumento do preço dos aluguéis, muito acima da inflação, muito acima do aumento dos salários, para quem tenta a sobrevivência em grandes cidades como São Paulo. Tanto que apareceu esse fenômeno de 8.000 famílias acampadas, mais 2.000 querendo entrar na ocupação, uma boa impressão do que é hoje o déficit habitacional urbano no Brasil.

Correio da Cidadania: Como está o quadro atual das ocupações urbanas em São Paulo e região metropolitana, e também nacionalmente?

Guilherme Boulos: Na cidade de São Paulo, particularmente na capital, nós temos buscado construir alternativas com dezenas de ocupações. Do segundo semestre pra cá, foram mais de cinquenta ocupações na periferia de São Paulo por conta deste fenômeno, que nós atribuímos também àquilo que se deu em junho. Porque o problema da especulação imobiliária e do aumento do preço dos aluguéis não vem de hoje. Era um barril de pólvora que vinha se acumulando e, de algum modo, as mobilizações que ocorreram em 2013 mostraram ser possível se levantar, se mobilizar para ter alternativas. É neste sentido que nós vemos o crescimento das ocupações.

No caso de São Paulo, nós estamos tentando construir alternativas que passem pela utilização dos terrenos públicos, o município ainda tem uma quantidade razoável de terrenos ociosos. Assim, é muito mais fácil se valer de tais terrenos públicos do que iniciar processos de desapropriação na legislação atual, muito retrógrada em relação à desapropriação. A legislação protege o proprietário privado, o especulador, em todos os sentidos. Demora-se muito e o proprietário ainda recebe indenização em valor de mercado. A desapropriação em áreas urbanas muitas vezes é um bom negócio para o proprietário.

Por isso, estamos insistindo no uso do terreno público. Agora, no debate do Plano Diretor de São Paulo, a ser votado nas próximas semanas pela câmara municipal, discutiremos a importância de se aprofundarem os instrumentos que permitam ao poder público o combate à especulação. O IPTU progressivo, a desapropriação por usucapião, o direito de preempção, são todos instrumentos já previstos no Estatuto da Cidade, infelizmente muito pouco aplicados Brasil afora.

Correio da Cidadania: O que você pode dizer a respeito da informação veiculada pela mídia de que, em tempos de programa habitacional que visa 1 milhão de novas moradias, o déficit habitacional brasileiro tenha crescido em praticamente 1,5 milhão de unidades?

Guilherme Boulos: Para lidar e ter a negociação correta com as ocupações em curso, passa-se, essencialmente, pela questão fundiária, pelo valor da terra. Hoje nós vivemos uma situação no Brasil, nos grandes centros urbanos, em que há recursos para construção, através do programa Minha Casa Minha Vida, mas não há terra. Porque a terra é muito cara e o recurso disponível não dá conta de comprá-la.

Portanto, o nó a ser desatado é conseguir resolver o problema da terra, e isso implica medidas mais restritivas, mais duras em relação ao patrimonialismo e aos especuladores imobiliários.

As ocupações que temos em São Paulo estão enfrentando esses desafios. No caso específico da Nova Palestina, estamos trabalhando por uma mudança de zoneamento do Plano Diretor, buscando transformar aquela área numa ZEIS 4 (Zona Especial de Interesse Social 4), que permite conciliação entre moradia e meio ambiente. Esperamos que seja aprovada pela Câmara Municipal até março, para que se possa ter uma negociação da área e condição de moradia.

Correio da Cidadania: Como tem sido a relação com os poderes públicos, especialmente a prefeitura, que tem promessas de desapropriar terrenos e prédios e oferecer 55 mil moradias para as camadas mais populares?

Guilherme Boulos: A primeira reação da prefeitura, da gestão Haddad, às ocupações em São Paulo foi muito ruim. Uma reação de acusar, dizer que só atrapalhava a política habitacional, que as ocupações inclusive sugeriam motivações de desgaste ao governo... Depois, acho que o governo foi percebendo – e a ocupação Nova Palestina foi importante pra isso – que o problema era de ordem mais estrutural. Não precisava condenar nem reprimir. Chegou-se até a uma repressão da guarda municipal, sem ordem judicial, para despejar famílias na região do Campo Limpo. Mas é preciso oferecer alternativas políticas. Desse modo, tem avançado o diálogo com a gestão Haddad. Embora seja ainda um diálogo limitado, tem se avançado para encontrar alternativas.

Nós entendemos que deve se caminhar nessa direção, em particular aqui em São Paulo. Independentemente do que se pense sobre o governo do Haddad, é visível que está sofrendo um cerco duro da mídia conservadora, da mídia tradicional. Está sofrendo um cerco também dos setores mais conservadores, do capital imobiliário da cidade – apesar de sua campanha eleitoral ter sido financiada por eles.

Porém, o governo precisa ter a visão de que, pra vencer tamanho cerco, é necessário entender que os movimentos têm papel essencial. O papel do movimento ao ocupar uma terra permite uma mudança de correlação de força, pressiona o capital imobiliário e permite ao governo fazer mais. Sem os movimentos populares, o governo Haddad não vai ter correlação de força para fazer as 55.000 casas, como prometeu para os quatro anos de gestão.

Portanto, a presença dos movimentos, enfrentando os especuladores, enfrentando o capital imobiliário, enfim, colocando-os contra a parede, dá mais condições para que o governo realize este programa. Esperamos que o governo adquira mais essa compreensão e leve suas posições cada vez mais para a esquerda, o que permitirá o atendimento das demandas, particularmente no campo da habitação, mas não só.

Correio da Cidadania: Podemos afirmar que a luta dos sem teto nas grandes cidades já atinge os patamares do MST em seus momentos de auge?

Guilherme Boulos: A luta do MTST tem muitos paralelos com a luta dos Sem Terra, não à toa. O MTST nasceu a partir do debate e iniciativas do Movimento dos Sem Terras. O enfrentamento ao capital imobiliário, à especulação imobiliária na cidade, é também um enfrentamento à especulação de terra e aos coronéis do agronegócio, no campo. Aliás, esse paralelo pode até ir mais longe, se nós pensarmos que os dois setores mais privilegiados pelos governos petistas, nos últimos dez anos, foram exatamente o agronegócio e o capital imobiliário.

O governo neoliberal do FHC privilegiou quase que exclusivamente os financistas, quer dizer, o capital financeiro. O governo Lula e Dilma mantiveram o patrocínio ao capital financeiro, mas também há um investimento pesado através do BNDES, do PAC, no capital imobiliário da construção pesada, do programa Minha Casa Minha Vida, com muito recurso público para esses dois setores.

Portanto, hoje, o MST está enfrentando um dos setores de ponta do capitalismo brasileiro no campo, o agronegócio. E nós, do MTST, estamos enfrentando um dos setores de ponta do capitalismo brasileiro no meio urbano, o capital imobiliário. Esse enfrentamento, certamente, ainda vai ter muitos capítulos.

Vemos que tais setores, que podemos chamar de capital imobiliário, envolvendo grandes construtoras, incorporadoras, proprietários de terra, têm cada vez mais força política e econômica na sociedade brasileira. Estão construindo uma verdadeira hegemonia, abocanhando uma parcela incrível de recurso público, conseguindo uma influência forte em todas as esferas do Estado, de modo importante, através de financiamento de campanha eleitoral. Construtoras e empreiteiras são as maiores financiadoras de campanha eleitoral do país, e assim vão remodelando a cidade de acordo com os seus interesses. E tais interesses vão na contramão dos interesses sociais.

O que nós vivemos hoje no Brasil é um processo de contrarreforma urbana. A cidade vai passando por um agravamento da segregação e da exclusão, com mecanismos para se tornar cada vez mais uma cidade mercadoria. Os megaeventos são expressão disso, da força total das construtoras. A falta de regulamentação pública sobre o espaço urbano vai criando uma privatização completa da cidade. Resistir é essencial.


Nós entendemos que o papel do MTST, e de vários outros movimentos urbanos, é construir a frente de resistência ao que o capital imobiliário tem feito, isto é, moldar a cidade de acordo com os interesses do lucro e com medidas extremamente antipopulares.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O mundo assombrado de Rachel Sheherazade

Sem dúvida, aterrorizar a população, plantar o medo por meio de notícias sensacionalistas, é um dos meios mais efetivos de legitimar a violência.
Sob pretexto de combater uma violência supostamente desenfreada, alguns dos que querem sempre menos Estado e reclamam de um suposto "Estado balofo", louvam a violência estatal, o aumento de penas, a criação de tipos abertos, dentre outras medidas que visam a legitimar a violência estatal, a repressão em nome de certa ordem pública, que visam a aumentar o "Estado policial", o "Estado Emergencial", o "Estado de Exceção".

Sobre isto, o texto publicado em Carta Capital é preciso (http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-mundo-assombrado-de-rachel-sheherazade-4025.html). Vejamos:


O mundo assombrado de Rachel Sheherazade

Deram uma página em branco para apresentadora e ela manifestou tudo o que conhece sobre o Brasil: nada

por Matheus Pichonelli

Em entrevista recente à coluna Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, a apresentadora do SBT Rachel Sheherazade contou ser neurótica com a violência urbana, sobretudo porque noticia diariamente “tudo o que há de ruim”. Por isso, relatou, só sai de casa para ir ao trabalho. De vez em quando vai ao shopping ou ao teatro. Sempre de carro blindado.
O mundo que ela e certa casta de detentores da verdade noticiam, portanto, é um mundo projetado. Ruim, decerto, mas desenhado sem conhecimento de causa. É uma praga que corrói o jornalismo: quem se propõe a narrar diariamente os fatos não conhece os fatos. Não anda nas ruas. Não circula. Não sai da bolha. E, do alto de um mirante, passa a emitir ordens sobre como é a vida de sua audiência e/ou leitores, estes que eles mesmos mal sabem quem são ou como vivem.
Sobre esta espécie de “editoria de piá criado em prédio”, tínhamos uma sentença já à época de faculdade: podem enganar até seus chefes, mas deem uma folha em branco a eles para escrever sobre qualquer assunto e de lá não sairá nada.
Pois então. Na terça-feira 11, a mesmaFolha de S.Paulo deu vida a esta alegoria. Espaço para especialistas, estudiosos e pesquisadores, a seção Tendências e Debates deu uma folha em branco para Sheherazade demonstrar tudo o que sabe sobre segurança pública, direitos humanos e sobre o seu país que, dias atrás, ela confessou se limitar da casa ao trabalho e, esporadicamente, da casa para o shopping. É nessa trajetória que ela recria a imagem de um país jorrado em sangue: sem policiamento, com bandidos à solta, armas em punho, a cometer todas as atrocidades contra todo mundo que é de bem. Pessoas que, segundo sua peça literária publicada em forma de artigo, escolheram ser criminosas e hoje recebem a solidariedade e pena de ONGs e grupos de direitos humanos e por isso, e só por isso, têm carta-branca para instalar o real estado de natureza em um país de impunidades.
Em resumo, deram uma página em branco para Sheherazade e ela manifestou tudo o que conhece sobre o Brasil: nada. Neste espaço, ela voltou a dizer que os criminosos estão soltos, que o Brasil é um dos países mais violentos do planeta, que a lei é frágil, que os menores infratores estão protegidos e que só quem agride animais vai para a cadeia. Neste universo, diz identificar nitidamente o bem e o mal: o bem somos nós, eu, você, cidadãos que pagam impostos e têm o direito à vida. Os maus são os criminosos comuns protegidos por ONGs e pelo Estado que atrapalham nossos caminhos em direção a uma vida de bem: casa, trabalho, shopping.
De fato, somos um país violento. Mas essa violência é mais difusa do que supõe sua folha em branco. Por isso ela e seus seguidores não conseguem reconhecer que parte da nossa violência brota de onde menos se espera. É reproduzida, por exemplo, por grupos que ela diz compreender que ajam ao arrepio da lei. Se a ação destes grupos é compreensível, diante da barbárie que ela jura estar instalada, estamos prestes a aceitar que encapuzados organizados saiam às ruas, diante da paralisia que ela jura estar encerrada à polícia, para colocar ordem no estado. Assim, saímos legitimados a espancar não só o “trombadinha”, como também a prostituta, o andarilho, o casal gay. Ou seja: façam exatamente o que fazem no Brasil há séculos.
Em seus argumentos, Sheherazade afirma que a sensação de impunidade no Brasil se deve à fragilidade do Estado, culpa de um policiamento falho amarrado a normas sobre autos de resistência. Se andasse na periferia, saberia o que é discurso oficial e o que é piada pronta. Se soubesse ler estatísticas, saberia que quem está na mira não são os cidadãos aprisionados em condomínios fechados, mas jovens e pobres e das periferias. Uma pesquisa divulgada pelo Ipea no fim do ano passado mostrou que dois de cada três assassinatos no Brasil têm como vítima um negro. Em janeiro, um levantamento do iG revelou que os três distritos com mais assassinatos em São Paulo ficam na periferia da cidade: Parque Santo Antônio, Capão Redondo e Campo Limpo. Não é pena, é estatística: não é a ordem da periferia que provoca mortes no centro, mas a ordem do centro que provoca mortes na periferia. Por isso podemos andar tranquilamente por espaços do centro, iluminados e bem policiados: a escuridão está longe da nossa trajetória.
Em Campinas, a pena que ela diz existir sobre a bandidagem não salvou 13 pessoas, alguns sem passagem pela polícia, da morte em duas chacinas na mesma noite. Policiais militares da região são os principais suspeitos. E se a atenção sobre autos de resistência fosse de fato um elemento a corroborar com a impunidade, ninguém daria tiro a céu aberto contra portadores de bolas de gude durante um protesto em São Paulo. Basta olhar a profusão de cassetetes, bombas de efeito moral e interrogatórios ao ar livre, com tapas na cara e pontapés, para lembrar também que no Brasil desconhecido por Sheherazade ninguém está exatamente constrangido em aplicar rigor sobre qualquer suspeita.
Mas Sheherazade e tantos outros detentores do monopólio da verdade sobre as ruas não andam nas ruas: provavelmente nunca viram qualquer abordagem para tirar qualquer conclusão. A falta de contato com o mundo cria narrativas paralelas e, nessas narrativas, a visão de mundo não tem pé na realidade nem na análise fria de qualquer estatística. Por isso ignora-se que a seletividade da aplicação da lei é o elemento que permite todo tipo de barbárie, e não a frouxidão de suas normas. Sheherazade poderia explicar, por exemplo, como um Estado mais rígido, que ela jura inexistir, poderia impedir a barbárie nos locais onde, por natureza, não existe policiamento: as casas das famílias de bem, de onde saem pais e mães assassinados, esposas e esposos esfaqueados e colocados na mala, filhos são jogados pela janela ou levados ao córrego vizinho. (No artigo, ela diz que o cidadão de bem está desarmado e isso é culpa do Estado, mas ignora os crimes com armas de fogo cometidos dentro de casa por pais e filhos com armas ao alcance).
Ainda segundo o mundo de Sheherazade, as delegacias e presídios estão vazios: os criminosos pintam e bordam e saem de lá pela porta da frente, enquanto os cidadãos de bem que matam papagaios estão presos. Pois, fora do caminho casa-trabalho-shopping, o Brasil está curioso para conhecer essa multidão assassina de passarinhos que abarrotam as celas das delegacias e penitenciárias brasileiras. Se Sheherazade conhecer um, que nos apresente, pois no mundo real tem mais gente presa do que ela imagina. Quem está solto, podemos garantir, não são os menores que transformam a vida da população de bem em um inferno, mas cidadãos que não assaltam carteira, mas orçamento; golpistas com editais de serviços públicos debaixo dos braços; engravatados de cartéis e oligopólios no campo e na cidade; autoridades com vistas grossas sobre venda e distribuição de drogas e armas; mandantes protegidos por capangas; e até machões enciumados que alegaram direito à honra para justificar o morticínio. A diferença é que estes ganham tempo com recursos processuais dos quais só uma parte da população ouviu dizer.
Se olhar caso a caso, a apresentadora talvez se espante em saber que a nuance da tragédia diária não cabe na narrativa de bem e mal. Dizer que soluções simplistas não vão resolver problema algum não é demonstrar pena de bandido ou do inocente: é simplesmente ser realista e desapegado de fórmulas mágicas.

O Brasil é, de fato, um lugar de insegurança patente, mas existem muitos Brasis dentro de um mesmo país. Um está fora dos centros e tem um corpo esturricado em cada beco pelo Estado, por grupos paramilitares ou por acerto de conta; outro, encalacrado em bairros nobres, tem padrão israelense de segurança. É disso que se trata quando se pede responsabilidade na palavra final dos fatos. Não se trata de apelo à piedade ou à censura, mas de um apelo à razão. Dentro de casa, apavorados com o próprio medo e o mofo das cortinas fechadas, criamos um monstro imaginário, damos cor e rosto a um inimigo e passamos a defender soluções autoritárias para poder sair do quarto. Só sairemos de lá quando as ruas estiverem limpas. Foi este o apelo que permitiu ao longo da História a adoção de políticas autoritárias em troca da dissolução de direitos civis, políticos e sociais, sobretudo os grupos já marginalizados (atenção: não estamos falando de marginais). Estas respostas autoritárias não fizeram do planeta um lugar melhor para se habitar. Pelo contrário, criaram novas chagas. No caso do Brasil, existem chagas demais a serem tratadas. Espancar, torturar ou humilhar jamais fechou nenhuma delas.