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Um dos grandes fenômenos sociais da atualidade, a luta pela
moradia nas grandes cidades, ganhou um capítulo marcante neste início de ano,
com a imensa ocupação entre os bairros de Jardim Ângela e Capão Redondo (zona
sul da capital paulista), denominada Nova Palestina e formada por cerca de 8000
famílias.
“Agora, a realidade é que está se tornando cada vez mais
fácil fazer ocupação urbana, por um motivo que não é bom: o aumento da demanda.
As famílias estão, cada dia mais, sem outra alternativa, a não ser a ocupação
de terra, para ter assegurado seu direito à moradia”, constata Guilherme
Boulos, membro do MTST, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Para explicar o aumento do déficit habitacional brasileiro,
recentemente difundido em matéria da mídia, Boulos aponta um velho ponto
central. “Para lidar e ter a negociação correta com as ocupações em curso,
passa-se, essencialmente, pela questão fundiária, pelo valor da terra. Hoje,
nós vivemos uma situação no Brasil, nos grandes centros urbanos, em que há recursos
para construção, através do programa Minha Casa Minha Vida, mas não há terra.
Porque a terra é muito cara e o recurso não dá conta disso”.
Guilherme Boulos também conta um pouco das atuais dinâmicas
da luta por moradia em São Paulo, traçando paralelos entre as lutas dos sem
teto e dos sem terra, que, como aponta, se posicionam contra duas grandes
pontas de lança da atual economia brasileira: o agronegócio do campo e as
grandes incorporadoras nas metrópoles.
A entrevista completa, realizada em parceria com a webrádio
Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Inicialmente, você poderia nos contar
como se deu a Ocupação Nova Palestina e sua organização? Como foi a articulação
de um número tão alto de famílias?
Guilherme Boulos: A Nova Palestina hoje reúne cerca de 8.000
famílias, e há mais 2.000 na lista de espera. A maior parte estava morando de
aluguel, de favor em casa de parentes (o que se chama coabitação), áreas de
risco, barracos e em situação precária. E aqueles que moravam de aluguel tinham
mais da metade da renda familiar comprometida.
Esse é o drama que tem atingido cada vez mais famílias, com
o aumento da especulação imobiliária e o avanço do valor dos aluguéis, mesmo
nas regiões periféricas. Neste sentido, o claro movimento de modernização,
naquela região do Jardim Ângela e Capão Redondo, vem de longa data.
Agora, a realidade é que está se tornando cada vez mais
fácil fazer ocupação urbana, por um motivo que não é bom: o aumento da demanda.
As famílias estão, cada dia mais, sem outra alternativa, a não ser a ocupação
de terra, para ter assegurado seu direito à moradia.
Está insuportável o aumento do preço dos aluguéis, muito
acima da inflação, muito acima do aumento dos salários, para quem tenta a
sobrevivência em grandes cidades como São Paulo. Tanto que apareceu esse
fenômeno de 8.000 famílias acampadas, mais 2.000 querendo entrar na ocupação,
uma boa impressão do que é hoje o déficit habitacional urbano no Brasil.
Correio da Cidadania: Como está o quadro atual das ocupações
urbanas em São Paulo e região metropolitana, e também nacionalmente?
Guilherme Boulos: Na cidade de São Paulo, particularmente na
capital, nós temos buscado construir alternativas com dezenas de ocupações. Do
segundo semestre pra cá, foram mais de cinquenta ocupações na periferia de São
Paulo por conta deste fenômeno, que nós atribuímos também àquilo que se deu em
junho. Porque o problema da especulação imobiliária e do aumento do preço dos
aluguéis não vem de hoje. Era um barril de pólvora que vinha se acumulando e,
de algum modo, as mobilizações que ocorreram em 2013 mostraram ser possível se
levantar, se mobilizar para ter alternativas. É neste sentido que nós vemos o
crescimento das ocupações.
No caso de São Paulo, nós estamos tentando construir
alternativas que passem pela utilização dos terrenos públicos, o município
ainda tem uma quantidade razoável de terrenos ociosos. Assim, é muito mais
fácil se valer de tais terrenos públicos do que iniciar processos de
desapropriação na legislação atual, muito retrógrada em relação à
desapropriação. A legislação protege o proprietário privado, o especulador, em
todos os sentidos. Demora-se muito e o proprietário ainda recebe indenização em
valor de mercado. A desapropriação em áreas urbanas muitas vezes é um bom
negócio para o proprietário.
Por isso, estamos insistindo no uso do terreno público.
Agora, no debate do Plano Diretor de São Paulo, a ser votado nas próximas
semanas pela câmara municipal, discutiremos a importância de se aprofundarem os
instrumentos que permitam ao poder público o combate à especulação. O IPTU
progressivo, a desapropriação por usucapião, o direito de preempção, são todos
instrumentos já previstos no Estatuto da Cidade, infelizmente muito pouco
aplicados Brasil afora.
Correio da Cidadania: O que você pode dizer a respeito da
informação veiculada pela mídia de que, em tempos de programa habitacional que
visa 1 milhão de novas moradias, o déficit habitacional brasileiro tenha
crescido em praticamente 1,5 milhão de unidades?
Guilherme Boulos: Para lidar e ter a negociação correta com
as ocupações em curso, passa-se, essencialmente, pela questão fundiária, pelo
valor da terra. Hoje nós vivemos uma situação no Brasil, nos grandes centros
urbanos, em que há recursos para construção, através do programa Minha Casa
Minha Vida, mas não há terra. Porque a terra é muito cara e o recurso
disponível não dá conta de comprá-la.
Portanto, o nó a ser desatado é conseguir resolver o
problema da terra, e isso implica medidas mais restritivas, mais duras em
relação ao patrimonialismo e aos especuladores imobiliários.
As ocupações que temos em São Paulo estão enfrentando esses
desafios. No caso específico da Nova Palestina, estamos trabalhando por uma
mudança de zoneamento do Plano Diretor, buscando transformar aquela área numa
ZEIS 4 (Zona Especial de Interesse Social 4), que permite conciliação entre
moradia e meio ambiente. Esperamos que seja aprovada pela Câmara Municipal até
março, para que se possa ter uma negociação da área e condição de moradia.
Correio da Cidadania: Como tem sido a relação com os poderes
públicos, especialmente a prefeitura, que tem promessas de desapropriar
terrenos e prédios e oferecer 55 mil moradias para as camadas mais populares?
Guilherme Boulos: A primeira reação da prefeitura, da gestão
Haddad, às ocupações em São Paulo foi muito ruim. Uma reação de acusar, dizer
que só atrapalhava a política habitacional, que as ocupações inclusive sugeriam
motivações de desgaste ao governo... Depois, acho que o governo foi percebendo
– e a ocupação Nova Palestina foi importante pra isso – que o problema era de
ordem mais estrutural. Não precisava condenar nem reprimir. Chegou-se até a uma
repressão da guarda municipal, sem ordem judicial, para despejar famílias na região
do Campo Limpo. Mas é preciso oferecer alternativas políticas. Desse modo, tem
avançado o diálogo com a gestão Haddad. Embora seja ainda um diálogo limitado,
tem se avançado para encontrar alternativas.
Nós entendemos que deve se caminhar nessa direção, em
particular aqui em São Paulo. Independentemente do que se pense sobre o governo
do Haddad, é visível que está sofrendo um cerco duro da mídia conservadora, da
mídia tradicional. Está sofrendo um cerco também dos setores mais
conservadores, do capital imobiliário da cidade – apesar de sua campanha
eleitoral ter sido financiada por eles.
Porém, o governo precisa ter a visão de que, pra vencer
tamanho cerco, é necessário entender que os movimentos têm papel essencial. O
papel do movimento ao ocupar uma terra permite uma mudança de correlação de
força, pressiona o capital imobiliário e permite ao governo fazer mais. Sem os
movimentos populares, o governo Haddad não vai ter correlação de força para
fazer as 55.000 casas, como prometeu para os quatro anos de gestão.
Portanto, a presença dos movimentos, enfrentando os
especuladores, enfrentando o capital imobiliário, enfim, colocando-os contra a
parede, dá mais condições para que o governo realize este programa. Esperamos
que o governo adquira mais essa compreensão e leve suas posições cada vez mais
para a esquerda, o que permitirá o atendimento das demandas, particularmente no
campo da habitação, mas não só.
Correio da Cidadania: Podemos afirmar que a luta dos sem
teto nas grandes cidades já atinge os patamares do MST em seus momentos de
auge?
Guilherme Boulos: A luta do MTST tem muitos paralelos com a
luta dos Sem Terra, não à toa. O MTST nasceu a partir do debate e iniciativas
do Movimento dos Sem Terras. O enfrentamento ao capital imobiliário, à especulação
imobiliária na cidade, é também um enfrentamento à especulação de terra e aos
coronéis do agronegócio, no campo. Aliás, esse paralelo pode até ir mais longe,
se nós pensarmos que os dois setores mais privilegiados pelos governos
petistas, nos últimos dez anos, foram exatamente o agronegócio e o capital
imobiliário.
O governo neoliberal do FHC privilegiou quase que
exclusivamente os financistas, quer dizer, o capital financeiro. O governo Lula
e Dilma mantiveram o patrocínio ao capital financeiro, mas também há um
investimento pesado através do BNDES, do PAC, no capital imobiliário da
construção pesada, do programa Minha Casa Minha Vida, com muito recurso público
para esses dois setores.
Portanto, hoje, o MST está enfrentando um dos setores de ponta
do capitalismo brasileiro no campo, o agronegócio. E nós, do MTST, estamos
enfrentando um dos setores de ponta do capitalismo brasileiro no meio urbano, o
capital imobiliário. Esse enfrentamento, certamente, ainda vai ter muitos
capítulos.
Vemos que tais setores, que podemos chamar de capital
imobiliário, envolvendo grandes construtoras, incorporadoras, proprietários de
terra, têm cada vez mais força política e econômica na sociedade brasileira.
Estão construindo uma verdadeira hegemonia, abocanhando uma parcela incrível de
recurso público, conseguindo uma influência forte em todas as esferas do
Estado, de modo importante, através de financiamento de campanha eleitoral.
Construtoras e empreiteiras são as maiores financiadoras de campanha eleitoral
do país, e assim vão remodelando a cidade de acordo com os seus interesses. E
tais interesses vão na contramão dos interesses sociais.
O que nós vivemos hoje no Brasil é um processo de
contrarreforma urbana. A cidade vai passando por um agravamento da segregação e
da exclusão, com mecanismos para se tornar cada vez mais uma cidade mercadoria.
Os megaeventos são expressão disso, da força total das construtoras. A falta de
regulamentação pública sobre o espaço urbano vai criando uma privatização
completa da cidade. Resistir é essencial.
Nós entendemos que o papel do MTST, e de vários outros
movimentos urbanos, é construir a frente de resistência ao que o capital
imobiliário tem feito, isto é, moldar a cidade de acordo com os interesses do
lucro e com medidas extremamente antipopulares.
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